"Se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas fazer uma história nova." (Mahatma Gandhi)
É previsível que a atividade médica integral deva mesmo ser um contínuo exercício de sensibilidade, dada a nobreza da matéria prima envolvida. Mas o que torna essa maravilhosa profissão ainda mais estimulante e desafiadora é a imprevisibilidade das reações humanas frente a situações semelhantes, atestando que, definitivamente, não somos seres programáveis.
E algumas especialidades, por transitarem na faixa estreita que tenta separar expectativa de vida e fantasia, são ainda mais desconcertantes.
Dezenove anos depois da graduação, encantado com o entusiasmo dos que trabalhavam com transplantes, e tendo feito um treinamento específico, resolvi embarcar nessa locomotiva sem ter a menor ideia de que aquele era um caminho sem volta. Em parte pelo fascínio de sentir-se instrumento de protelação da morte, mas muito pelo vínculo de dependência afetiva com os que tinham sido agraciados por um tempo extra, importando pouco quão curto esse tempo fosse.
Como sempre, a proximidade da morte, por dar a todas as coisas o valor que elas de fato têm, é um modelo pedagógico irretocável de autenticidade, esperança, persistência, humildade e gratidão. É inevitável, ao conviver com os candidatos ao transplante, ser envolvido pela intensidade e abundância desses sentimentos.
Dois estímulos impulsionam o jovem médico a trabalhar com a proximidade tão explícita da morte: a fascinante tarefa de aliviar sofrimento, com o afago emocional que isso representa; e a insubordinação à tradição milenar da medicina de apenas oferecer conforto ao paciente, sem nenhuma pretensão de opor-se à história natural das doenças, e, com essa nova atitude, provar a euforia, temporária mas real, de retardar a sua marcha inexorável.
De resto, é impossível passar ileso pela experiência de compartilhar a ansiedade da espera, a incerteza de conseguir, a alegria de estar vivo para ganhar mais um dia de esperança ou a terrível dor da família de ter perdido a corrida desesperada contra o tempo. Ou pior ainda, receber o precioso órgão e, por estranha ironia, ser vítima de complicações inesperadas e, perdendo-o, perder-se.
Ouvindo o Valter Garcia descrever a odisseia que significou, ainda na década de 1970, implantar o transplante renal, que recém engatinhava no mundo, e forçar essa pretensão num hospital tão pobre que não tinha mais do que uma modesta diálise peritoneal, deixou evidente uma sensação que encheu o Teatro do Centro Histórico da Santa Casa de Porto Alegre: estávamos diante de um tipo que se alimentava das dificuldades para aumentar sua gana de fazer acontecer.
E de repente ficou claro que o relato dos 6 mil casos de transplante de rim, alvo original daquela homenagem, era apenas a consequência dessa gana. O olho brilhando de uma centena de cúmplices daquela proeza, espalhados pelo salão, era o jeito didático de dizer que ele nos representava e, com sua simplicidade comovente, confirmava o que a Santa Casa, durante seus 221 anos, tem ensinado a cada uma das suas crias: uma medicina de qualidade faz da competência e disponibilidade o seu modelo de propaganda silenciosa. Não importando o quanto seja complexo o que se tenha feito, nunca desistirmos de tentar fazê-lo melhor, fazendo de cada falha o despertador da gana de recomeçar.
Certamente por isso é tão pouco produtiva a busca de pretensiosos entre transplantadores.