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A pureza original do homem tosco

Publicada em 28/08/24 às 08:00h - 16 visualizações

por J. J. Camargo


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 (Foto: yta / stock.adobe.com)

"O acaso é o grande mestre de todas as coisas. A necessidade só vem depois, e não tem a mesma pureza." (Luis Buñuel)

A neta, que tinha trabalhado comigo na universidade, veio pedindo socorro. O avô, que eu não conhecia, tinha sido mandado de Aceguá, na fronteira com o Uruguai, com um câncer de esôfago, para ser tratado na Santa Casa. E, segundo ela, o avozinho não aceitava o tratamento e só falava em voltar para casa. "Quem sabe o senhor o convence!" 

Fui vê-lo, e o encontrei de braços cruzados, resistindo aos apelos cheios de diminuitivos da enfermeira, que pretendia puncionar uma veia para iniciar a quimioterapia.

"Bom dia, seu Firmino, eu sou o doutor José Camargo."

"Ah, a minha neta me falou que o senhor é o manda-chuva aqui!"

"Não se impressione com isso, seu Firmino, porque ninguém me obedece!"

"Bueno, aí pouco adianta!"

Não lembro, nesses anos todos, de uma conquista mais rápida: em 30 segundos de conversa ele já tinha me fisgado.

É exatamente nos nossos melhores dias que estaremos mais vulneráveis.

E o encanto tinha razões de sobra: o convívio social das grandes cidades impõe regras de civilidade que inclui um exercício básico de hipocrisia, indispensável a um relacionamento polido, ainda que às custas do sacrifício da espontaneidade. E aquele homem tosco, mas de uma pureza comovente, nunca precisara aprender que na presença de um desconhecido temos que ser cuidadosos, porque não temos a menor ideia de como ele seja, do seu estado de espírito, das imprevisíveis oscilações de humor, ou de que demônios o incomodam.

E não faria o menor sentido explicar que, na verdade, é exatamente nos nossos melhores dias que estaremos mais vulneráveis, porque a leveza da felicidade interior nos induz a supor que, naquele dia e lugar, todos devam estar igualmente exultantes. E porque nem lembramos mais do quanto as pessoas rindo na rua nos irritavam naqueles dias em que o mundo parecia ter conspirado para acabar conosco.

Quando me sentei para ouvir a história da vida do Firmino, mais pude invejá-lo, por ter chegado aos 88 anos vivendo na sua pequena comunidade, onde ninguém jamais esteve atormentado pelos melindres da sociedade urbana, uma comunidade preocupada o tempo todo apenas em ser, sem o desperdício de aparentar. E nada é mais previsível nesta condição do que a reciprocidade de afeto.

O relato do que a vida fora de casa lhe fraudara nesses 15 dias em que estava no hospital era puro sentimento, e por isso seu drama pessoal não podia ser incluído nos complexos algoritmos da medicina baseada em evidências, essa que aprendemos a usar como construção de um modelo a ser cumprido na orientação terapêutica de uma determinada doença, mas que não considera o que pensa dela o portador.

"Doutor, se o senhor manda alguma coisa, me ajude. Eu já vivi demais, já perdi minha velha, e não quero morrer nesta cidade barulhenta que nem me deixa dormir, que era o único jeito de não pensar o quanto estou sozinho. E se o senhor é mateador, sabe o quanto é ruim não ter ninguém para passar a cuia."

Não fiz mais do que abraçá-lo, antes de sair para assoar o nariz no corredor.




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