A eleição americana a ser disputada nesta terça-feira (5) pela democrata Kamala Harris e pelo republicano Donald Trump vai confrontar duas visões divergentes em relação ao futuro dos Estados Unidos capazes de provocar reflexos profundos sobre o resto do planeta. O embate coloca frente a frente propostas irreconciliáveis sobre temas econômicos e comportamentais como política de impostos, aborto, imigração, clima e armamento da população. O resultado que sairá das urnas americanas pode influenciar discussões semelhantes que ocorrem em outros países, como o Brasil.
Sob o ponto de vista econômico, enquanto Trump mira no corte de taxas de ricos a pobres, na imposição de impostos a importações e no resgate de estímulos a indústrias vinculadas a combustíveis fósseis, Kamala promete ampliar a tributação de milionários, estimular setores de ponta da indústria doméstica e estimular a transição do país rumo a fontes energéticas verdes.
Também sobram divergências entre os dois concorrentes — e entre as amplas fatias da sociedade dos EUA que eles representam — em relação a temas comportamentais que mobilizam debates acalorados.
Nesse campo da disputa eleitoral, que as pesquisas indicam ser voto a voto em um cenário de empate técnico, entre os assuntos mais espinhosos se destacam o direito das mulheres ao aborto e o acesso da população a armas. Os republicanos formam fileiras contra a interrupção da gravidez e em favor do armamento dos americanos, enquanto os democratas mantêm posições opostas nos dois casos. A eleição a ser definida nesta terça deverá ainda ter reflexo significativo em termos de política externa e sobre como lidar com o desafio da imigração ilegal.
— Desde a última grande crise de 2008, a polarização política nos EUA vem se acentuando. Isso faz com que, a cada eleição, temas que sempre foram sensíveis, como aborto e armamento, e outros sempre consagrados, como economia e política externa, somassem-se a temas como imigração e meio ambiente com contornos cada vez mais expressivos e dramáticos — avalia o economista e professor de Relações Internacionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Daniel da Cunda Corrêa da Silva.
Silva faz uma ponderação: embora as promessas dos atuais candidatos sejam radicalmente opostas, na prática as últimas gestões republicana e democrata apresentaram mais pontos em comum do que se imaginava.
— A política migratória de Trump, por exemplo, com a construção do muro na fronteira com o México, não foi revertida por Joe Biden. Ao contrário, abundam acusações de violações aos Direitos Humanos. A agenda ambiental foi atropelada pela circunstância geopolítica das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio e pela própria pandemia, fazendo com que o uso de combustíveis fósseis voltasse a acelerar nos EUA — argumenta o economista.
Silva lembra ainda que medidas protecionistas de Trump foram continuadas por Biden, inclusive endurecendo a batalha em temas sensíveis como inteligência artificial e a tecnologia 5G. A questão, a ser esclarecida a partir desta terça, é o quanto as novas ideias apresentadas por Trump e Kamala devem alterar esse cenário.
Donald Trump: combater a imigração ilegal é um dos pilares de sua campanha. Culpa imigrantes por crimes cometidos nos EUA e defende ações radicais para conter e deportar ilegais. Ergueu ou fortificou 725 quilômetros do muro junto ao México no primeiro mandato e promete concluir a barreira se voltar ao poder. Quer promover a maior deportação em massa da história americana, prender todo imigrante ilegal ou que descumpra lei migratória e barrar a concessão de cidadania para filhos de ilegais.
Kamala Harris: admite endurecer a fiscalização contra a imigração ilegal, mas de forma mais branda do que o republicano. Em discurso, defendeu um "caminho ordenado e humano para a conquista da cidadania por pessoas trabalhadoras". Propõe colocar em prática um projeto desenhado no Congresso que prevê aumento no número de agentes de fronteira, aumenta a velocidade de decisões envolvendo eventuais deportações e dificulta a concessão de asilo.
Donald Trump: apoia recentes restrições ao aborto. Em mais de uma oportunidade, reivindicou o crédito de ter nomeado três juízes conservadores para a Suprema Corte que ajudaram a derrubar a previsão constitucional que garantia às americanas o acesso ao aborto — abrindo caminho para normas estaduais mais restritivas. Desde então, pelo menos 21 estados dos EUA dificultaram o acesso ao procedimento. Tendo em vista preocupações de parte do eleitorado feminino, Trump diz não ter planos de impor uma proibição nacional ao aborto.
Kamala Harris: defende a retomada da antiga regra que garantia acesso ao aborto. Coloca-se como defensora dos direitos reprodutivos femininos, em oposição a Trump e aos setores mais conservadores. Promete sancionar uma eventual lei que restabeleça o direito ao aborto nacionalmente. Porém, como isso é difícil diante de um Congresso dividido, pretende alterar uma regra que, atualmente, exige ampla maioria de votos para aprovar mudanças nessa legislação. Compromete-se a barrar qualquer tentativa de se impor uma proibição nacional.
Donald Trump: quer reverter políticas adotadas pelo democrata Joe Biden para estimular uma transição energética para fontes mais limpas. O republicano retomaria investimentos em combustíveis fósseis como diesel, gás e carvão por considerar que o conceito de "aquecimento global" é uma estratégia criada pelos chineses para reduzir a competitividade americana. Trump retiraria os EUA do Acordo de Paris — firmado em 2015 com o objetivo de reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Ele chegou a anunciar a saída em 2017, mas Biden manteve os americanos sob o acordo.
Kamala Harris: embora reconheça a importância que os combustíveis fósseis ainda têm para os americanos, pretende dar sequência à política implantada pelo atual presidente Joe Biden de estimular a transição rumo a fontes verdes de energia por meio de medidas como incentivos fiscais. Também deve preservar a política atual de permitir deduções de impostos para estimular a compra de veículos elétricos e a produção de energia renovável. Kamala manteria os EUA como signatários do Acordo de Paris, com o objetivo de cortar emissões de gases poluentes.
Donald Trump: daria "apoio total" a Israel, o que fortaleceria a atuação do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu no enfrentamento a Hamas, Hezbollah e Irã, ao mesmo tempo em que defende cortar o envio de recursos para a Ucrânia na guerra com a Rússia. Trump já manifestou que buscaria uma paz negociada na região, o que permitiria aos russos ficar com parte do território ucraniano. É crítico ao alto volume de recursos colocados pelos EUA na Otan em comparação a outros países, e quer ampliar a taxação de produtos chineses como forma de conter o avanço dos asiáticos.
Kamala Harris: prega a manutenção do apoio americano à Ucrânia, a imposição de sanções contra o governo de Vladimir Putin, e considera que a cessão de território aos russos equivaleria a uma rendição. Apoia a defesa de Israel contra o ataque feito pelo Hamas em 7 de outubro, mas com críticas à incapacidade de Netanyahu de proteger os civis palestinos. Buscaria uma solução de dois Estados (um judeu e um palestino). Quer manter a participação americana na Otan, e buscaria conter o avanço chinês de forma mais suave do que Trump por meio de ações como alianças com outros países asiáticos e restrições à exportação de chips americanos à China.
Donald Trump: o foco é o corte de impostos e de incentivos à transição energética verde, e o aumento de tarifas sobre produtos importados. Prevê estabelecer tarifas de 10% a 20% sobre importações em geral, que poderiam superar 60% em caso de produtos chineses. Também prevê reduzir a alíquota do imposto corporativo de 21% para 15% com a intenção de incentivar a produção nacional. Prevê corte geral de impostos, incluindo as classes mais altas, e retomada do apoio a indústrias de petróleo e gás.
Kamala Harris: promete reduzir o custo de vida dos americanos com foco na classe média, enquanto ampliaria a taxação sobre a parcela mais rica dos americanos. Pretende dar crédito de US$ 25 mil para quem queira comprar o primeiro imóvel. Ampliaria a cobrança de impostos sobre milionários, com taxa de 25% sobre quem tem fortuna acima de US$ 100 milhões, e elevaria alíquota do imposto para grandes empresas de 21% para 28%. Em compensação, prevê créditos fiscais para estimular setores de ponta da indústria doméstica.
Donald Trump: pretende garantir o amplo acesso a armas por parte dos americanos e combater propostas que limitem a posse de armamento por cidadãos do país. Recentemente, declarou que iria “reverter todos os ataques de Biden à 2ª Emenda Constitucional” — dispositivo de 1791 que permite o porte e a posse de armas sob justificativa de legítima defesa. O republicano admite, porém, restringir o acesso a armamento entre pessoas suspeitas de terrorismo.
Kamala Harris: defende maior controle sobre venda de armamento nos EUA — especialmente envolvendo armas de assalto, como fuzis e semiautomáticas. Em entrevista à apresentadora Oprah Winfrey, recentemente, observou que armas desse tipo foram projetadas "para ser uma ferramenta de guerra" e "não têm lugar nas ruas de uma sociedade civil". Porém, admite ter uma arma em casa. É a favor ainda de verificações mais completas de antecedentes para permitir venda de armamento.