Pressionado pela agenda de costumes das bancadas conservadoras, o governo federal fechou maio com o segundo menor índice de fidelidade na base aliada desde o início da gestão. A aparente fragilidade não se traduz na pauta econômica, aprovada quase sempre com ampla maioria, mas reflete uma dificuldade contumaz na articulação política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com elevado grau de traições nos partidos aliados.
A atual sensação de crise deve refluir nas próximas semanas, com o esvaziamento do Congresso pelas festas juninas no Nordeste e os preparativos para a eleição municipal. A médio prazo, a pacificação vislumbrada nos corredores do Palácio do Planalto passa por uma arquitetura política que conduza Arthur Lira (PP-AL) à Esplanadas dos Ministérios e eleja ao comando da Câmara e do Senado parlamentares mais alinhados ao governo.
Atual presidente da Câmara, Lira representa a dualidade enfrentada pelos articuladores do governo. Com enorme influência sobre os pares, sobretudo sobre integrantes das bancadas de direita e do centrão, manobra a pauta e o regimento para pressionar e constranger o Planalto. Criando dificuldades para oferecer facilidades, dá vazão a medidas econômicas, mas freia pautas identitárias, ao mesmo tempo em que acelera projetos de viés conservador. Por vezes, é obrigado a recuar, como recentemente, durante as discussões sobre projeto de lei que aumentava pena para aborto legal.
Para fugir dessas armadilhas, o governo costura acordo pelo qual não apresenta candidato à presidência da Câmara, deixando Lira indicar o sucessor. Na sequência, leva o alagoano para a Esplanada. Nos bastidores, cogita-se o Ministério das Comunicações, pasta afeita às ambições de Lira por causa da capilaridade política e da proximidade com o poder, atributos que necessita para pavimentar o caminho ao Senado em 2o26.
Lula usaria a reforma ministerial para resolver outros entraves. Atual titular das Comunicações e sustentado no cargo por Lira, Juscelino Filho iria para uma pasta menor, onde ficaria menos exposto às investigações da Polícia Federal por corrupção. Na Saúde, outro foco de reclamações do Congresso, Lula colocaria no lugar de Nísia Trindade o atual ministro da Secretaria de Relações Institucionais, Alexandre Padilha.
Desafeto de Lira, Padilha acumula desgastes na interlocução do Planalto com o Congresso. Todavia, conseguiu a aprovação de 37% das propostas enviadas no primeiro ano do mandato, índice que diz ser o maior de um articulador político desde a redemocratização — em comparação, no primeiro ano de Jair Bolsonaro apenas 6% das medidas foram aprovadas. Em fevereiro, Padilha alcançou 70% de fidelidade na base, batendo recorde na atual gestão com a aprovação de 21 medidas provisórias (MPs) da equipe econômica. Em maio, esse percentual caiu para 46,4%, segundo menor em 14 meses de votações.
Essa inconstância resume a nova configuração do presidencialismo de coalizão, pelo qual antes a distribuição de ministérios entre os partidos aliados garantia a sustentação parlamentar do governo. De acordo com o cientista político Carlos Eduardo Borenstein, agora já não há mais adesão automática e as legendas enfrentam profundas divisões internas. Com exceção de poucos partidos, como PT e Novo, os demais são menos caracterizados por ideário e unidade.
— A coesão é maior nas bancadas temáticas, como na ruralista, na evangélica e na policial, do que nos partidos. Além disso, o Congresso é muito mais protagonista, tanto na formulação de agenda quanto no controle do orçamento. Então, o êxito da articulação depende muito da relação com os presidentes das Casas — aponta o consultor da Arko Advice.
Tal fragmentação não é a única causa para a dificuldade palaciana. Haveria escassez de diálogo e omissão. Irritado com a falta de negociação prévia sobre a reoneração de créditos do PIS e Cofins, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), devolveu a MP com a qual o Ministério da Fazenda esperava ampliar receitas.
O próprio presidente Lula tem evitado conversar com deputados e senadores, prática que mantinha com regularidade nos mandatos anteriores. Desde o início do ano, Lula recebeu em agenda privada no Planalto apenas três parlamentares, todos do PT: o senador Rogério Carvalho, em 24 de abril, e o deputado Rogério Correia, em 30 de janeiro, e o deputado Rui Falcão, em 5 e 8 de janeiro. Nem mesmo os tradicionais convescotes no Palácio da Alvorada Lula tem oferecido, limitando-se a três happy hours em 2024.
A tensão se acentua num cenário em que o governo tem a menor base de sustentação desde a redemocratização, que os parlamentares perderam parte do controle sobre o orçamento conquistado sob Bolsonaro e no qual bons indicadores econômicos, como aumento do PIB, da massa salarial e do emprego, não se traduzem em aprovação popular.
Embora a última pesquisa Datafolha tenha apresentado um leve recuo nas avaliações negativas do governo Lula, a polarização enraizada no eleitorado alimenta um ambiente de eterna disputa. Ciente da minoria diante da numerosa bancada conservadora no Congresso, o governo evita ir para o embate na agenda de costumes, como ocorreu na votação do veto a saidinhas de presidiários e na discussão sobre aborto. Perdeu a primeira sem entrar em campo e venceu a segunda graças à mobilização da sociedade civil.
— Nada do que aconteceu nas sessões do Congresso surpreendeu os articuladores do governo — resignou-se Padilha.
Fonte: Arko/Advice, com base em votações nominais nas quais houve orientação de voto por parte da liderança do governo.
Lula tem a menor grupo de apoio na Câmara desde a redemocratização
Fonte: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar