Diante da devastação de um Estado que além de inundado pela dor das perdas humanas acumula prejuízos sociais, materiais e econômicos, emerge a potência do empresariado gaúcho, que tem compartilhado com o poder público e a sociedade civil o protagonismo na reconstrução do Rio Grande do Sul. A enchente histórica também trouxe à tona iniciativas do setor privado para criação de fundos e destinação de recursos ao enfrentamento da catástrofe. A largada de seis grandes fundos já soma R$ 176 milhões (confira quadro abaixo).
— O Estado e os governos têm pessoas espetaculares, mentes brilhantes, mas muitas vezes não podem fazer o melhor por conta de burocracia e excesso de controle — diz Leonardo Fração, presidente do Instituto Cultural Floresta (ICF), que direcionou suas ações de filantropia para auxiliar na recuperação, agilizando e promovendo um processo decisório mais racional e flexível para o uso dos aportes financeiros.
Fração reforça que a estrutura do instituto para ajudar estava pronta desde 2016, com a confiança de doadores que já possibilitaram a arrecadação de R$ 80 milhões dos mais diversos locais do país.
— Historicamente, tínhamos nossas doações ligadas a grandes famílias do RS, mas vemos que esta catástrofe foi tão grande, que ajuda destas famílias está sendo muito maior, e tem sido feita diretamente — destaca.
É o caso da família Gerdau Johannpeter, idealizadora do RegeneraRS, cuja meta é alcançar R$ 100 milhões para apoiar projetos em quatro áreas: educação, habitação, soluções urbanas e negócios. O fundo terá gestão e coordenação da coalizão da Din4mo Lab, consultoria especializada em negócios de impacto social que surgiu com objetivo apoiar o desenvolvimento de startups nessa área. Divulgado na terça-feira (3), recebeu uma doação inicial de 30% do valor pretendido, ou seja, R$ 30 milhões do Instituto Helda Gerdau.
— A ideia é um fundo de fundos, aberto a todos, com forte governança para escolher as iniciativas que serão apoiadas — afirma Beatriz Johannpeter, uma das diretoras do instituto, que salienta a importância de estimular a cultura da doação, um dos objetivos do programa.
— Queremos aproveitar o aprendizado da dor para que cada um coloque a mão no bolso, conforme as suas possibilidades — diz. — Sabemos da importância da participação da iniciativa privada e do terceiro setor, mas tudo é pequeno perto da relevância do que precisa ser feito — complementa, em entrevista à coluna de Marta Sfredo.
Na abertura da Bolsa de Valores de Nova York, em 13 de maio, o homenageado da data, Alexandre Birman, CEO da Arezzo, anunciou a criação do fundo do Movimento Próximos Passos. A iniciativa - elaborada com outros empresários, entidades e empresas da indústria calçadista como Vulcabras, Beira Rio, Grupo Dass, Ramarim, Piccadilly e Usaflex - arrecadou R$ 6 milhões apenas na primeira noite de existência e segue recebendo. As doações recolhidas via Pix ou depósito nacional e internacional estão sendo alocadas para posterior destinação a entidades de auxílio mapeadas nas cidades atingidas.
— Me sinto honrado em ter a oportunidade de representar o Estado e ampliar a voz sobre a necessidade de um plano de ação urgente para a sua reconstrução. Não vou medir esforços para atuar de formar efetiva em um plano de ação urgente para a reconstrução do ecossistema calçadista gaúcho — prometeu Birman.
Esse tipo de fundo privado de captação de recursos não chega a ser uma novidade. Os instrumentos são tendência há algum tempo, mas ganham visibilidade em momentos mais críticos como o que agora se observa no Rio Grande do Sul.
A modalidade dos fundos é inspirada por estratégias de investimento social ou parcerias multissetoriais. Uma das vantagens, conforme explica o advogado, economista, ex-presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Manoel Gustavo Neubarth Trindade, é a redução de eventuais perdas decorrentes de alocações inadequadas, ou que não se destinem às efetivas prioridades traçadas.
Da mesma forma, diz ele, tendem a barrar a ocorrência de desvios, uma vez que a meta é evitar o desperdício com custos de transação.
Normalmente compostos por empresários, alguns dos quais aderiram ao movimento global de responsabilidade corporativa, incorporando à agenda ESG em suas organizações, eles buscam promover o desenvolvimento do Estado via ações privadas, capazes de gerar impacto positivo nas comunidades.
Podem ter diferentes destinações, voltados a áreas como saúde, educação, inovação e outras, como é o caso do Instituto Cultural Floresta, por exemplo, que surgiu em meio a uma crise de segurança pública e reuniu empresários para proverem recursos que se destinariam, à época, especificamente a essa área. Com a continuidade, o ICF acabou por ampliar o escopo e a apoiar outras iniciativas de reconstrução e desenvolvimento comunitário.
Ao contrário de doações diretas ao governo, esses fundos oferecem maior controle, transparência e impacto direcionado. É o que comenta o advogado Manoel Gustavo Neubarth Trindade, que também elenca alguns benefícios fiscais e de reputação para as empresas envolvidas.
— Essas iniciativas são inspiradas por uma combinação de responsabilidade social corporativa, desejo de inovação social e modelos internacionais de filantropia (que, além de terem mais eficácia e transparência, também têm foco no impacto de longo prazo) — comenta.
Segundo ele, a mobilização privada para apoiar projetos, por meio da articulação de parcerias estratégicas e multissetoriais, confere muito mais agilidade e transparência, possibilitando também maior controle sobre a gerência (gestão independente) e o direcionamento dos recursos, promovendo uma colaboração efetiva entre setor público e privado.
Para além dos benefícios fiscais, que são, de fato, estímulo para que empresas e indivíduos redirecionem parte de seus impostos devidos para projetos chancelados pelo governo, a filantropia por meio dos fundos privados dá mais liberdade para o direcionamento e o acompanhamento dos valores, o que gera capilaridade aos investimentos.
Outro objetivo que não pode ser negligenciado, na avaliação do advogado Manoel Gustavo Neubarth Trindade, é a promoção de um ambiente social e de negócios adequado, a fim de que seja possível restabelecer o bem-estar e o desenvolvimento econômico nas regiões.
— Para isso, será imprescindível investir muitos e vultosos recursos tanto para a recuperação da infraestrutura do Estado, como também para a propiciar um mínimo existencial, com dignidade, para quem perdeu tudo o que tinha, e são milhares de pessoas — acrescenta Trindade.