O destino, muitas vezes, cria contradições como essa que assistiremos na noite desta sexta-feira (8) noite em São Paulo, contra o vice-líder do Brasileirão, o Palmeiras. Justamente no dia em que completa 800 jogos pelo Grêmio, somando as duas passagens como jogador e as quatro como técnico, Renato Portaluppi enfrenta o momento de maior desconfiança. Algo inédito para ele na relação com o clubes e a torcida dos seus amores.
Renato sempre deu resposta positiva vestindo azul, preto e branco, seja em campo ou na casamata. Porém, nesta temporada, seu trabalho passou a ser questionado, e o tom da torcida, por consequência, desafinou com seu maior ídolo. As vaias quando o seu nome foi anunciado pelo sistema de som da Arena antes do 3 a 1 sobre o Atlético-GO bateram fundo no técnico, como ele mesmo revelou na entrevista exclusiva que concedeu, na última quarta-feira (5), no CT Luiz Carvalho.
Nessa conversa, Renato relembrou sua trajetória e projetou seu futuro em uma conversa de 54 minutos. Ao seu estilo tradicional, sem papas na língua, o técnico falou sobre como enxerga a possibilidade de seguir no comando do clube do coração e de outros tantos assuntos que orbitam no ambiente do clube.
Uma história que começou com um guri rebelde, que teve de pular a janela de casa para ir de Bento Gonçalves até Porto Alegre viver um sonho no início dos anos 1980. Aquele jovem virou ídolo em Porto Alegre. Fez do antigo Estádio Olímpico seu lar. E foi lá, no gramado de sua casa, onde encontrou um cruzamento contra o Peñarol para entregar a América ao seu torcedor. E que ao fim de 1983, trilhou um caminho que ele abriu a dribles e gols. Mal sabia o defensor alemão que tentou pará-lo em Tóquio de que aquele ponteiro-direito rebelde estava prestes a pintar o mundo de azul, preto e branco.
Os dias de chuteira e uniforme, apesar de eternos na memória de uma geração, acabaram. Com 264 jogos disputados, 74 gols feitos e quatro títulos conquistados. Além da Libertadores e do Mundial, outros dois Gauchões estão na prateleira de taças conquistadas no Tricolor por Renato.
No retorno ao clube do coração em 2010, ele tirou o Grêmio da zona rebaixamento e o levou para a Libertadores. Foi a primeira passagem dele como técnico em Porto Alegre. Três anos depois, refez esse caminho para devolver o time à principal competição da América.
Mas só a estrela de Renato poderia quebrar uma seca doída para o torcedor. Depois de ver o tradicional rival debochar com uma valsa pelos 15 anos sem um título de expressão, o técnico liderou o time para a conquista do penta na Copa do Brasil em 2016. No ano seguinte, veio o tri da Libertadores e o retorno ao Mundial. E, em 2018, levantou a taça da Recopa Sul-Americana e o primeiro dos sete campeonatos gaúchos conquistados pelo clube em sequência.
É uma história construída em quatro passagens como técnico. Mesmo que o momento atual seja de dificuldades, a noite de sexta-feira, contra o Palmeiras, é de decisão para o futuro.
O que significa essa marca de 800 jogos?
É difícil até explicar, né? Bater essa marca de jogador e treinador, para mim, acho que aí responde muito o porquê tenho uma estátua no clube. Muito feliz, até porque, além de ter essa marca, se você juntar, são muitas conquistas. Tenho essa marca justamente porque dei muito em troca também. É o que eu falei. A minha estátua fala por si. Porque, como jogador e como treinador, eu conquistei muito.
Guarda com mais carinho as memórias da época de jogador ou agora como técnico?
É difícil. Como jogador não tem como não falar, por causa dos dois gols em Tóquio. Eu sabia que me garantia. Estava lá dentro para fazer as coisas, para ajudar. Como treinador, dependo dos outros. Para ser campeão, é muito difícil. É fácil você ver o pessoal comemorando, mas a caminhada é longa para ser campeão.
Principalmente, no momento em que fui campeão, como treinador, ninguém acreditava no nosso time. Então, é um mérito maior ainda. Depois de 15 anos, o Grêmio conquistou a Copa do Brasil, uma Libertadores. E muita gente que eu trouxe para ser campeão naquele ano eram jogadores desacreditados. Fui criticado por trazer os caras. E os caras foram os campeões. O título é uma emoção muito grande. Só que, como jogador, eu podia decidir, entendeu? Eu, como treinador, tenho de tomar as decisões, mas quem decide são os jogadores.
Qual a razão para esse casamento com o Grêmio dar tão certo?
É muito a ver o ambiente que se cria no grupo. Isso é fundamental. É por isso que abraço o grupo, estou sempre na linha de frente. Pode atirar em mim, mas no meu grupo não vai atirar. Então por isso que muitas vezes, nas entrevistas, eu até exagero. Tenho consciência disso. Justamente para o peso vir pra mim, não pra eles.
Tem chamado a atenção essa sua postura nas últimas entrevistas.
Reconheço isso, exagerei em algumas entrevistas. Mas ao mesmo tempo, se coloque no meu lugar. Você não tem noção do que eu passo e o que eu mato no peito dentro do clube. E aí chega uma hora que eu vejo muitas vezes, claro que não são todas, mas um ou outro falando besteira. Aí é o momento de descarregar. Estou errado, mas é o momento de descarregar. Você não tem noção do que eu faço nesse clube.
O que é essa pressão?
Muita gente já fala assim: "Ah, o Renato manda no Grêmio". Não mando p* nenhuma. Sou empregado do Grêmio. Quem manda no clube é o presidente, tem um vice-presidente, tem um executivo. Eu ajudo os departamentos. Simplesmente isso. Então muitas vezes é muita coisa na minha cabeça. Se estou vendo uma coisa errada, se não me meter, a coisa vai estourar em mim, no treinador. Procuro ajudar o clube e defender a instituição. Então sobre isso que você falou, que às vezes eu reconheço, eu vou mudar. Mas é muita pressão. Você não tem noção.
Essa irritação nas entrevistas não tem a ver com a possibilidade de seguir ou não, então?
Não tem nada a ver. Dois clubes grandes da Série A tentaram me tirar daqui há uns três meses. Falei para eles, costumo cumprir meu contrato. A não ser que o clube me mande embora. Nas últimas três semanas, quatro clubes da Série A me procuraram. Em uma situação dessa, jamais abandonaria o Grêmio. Jamais. E a situação poderia ser até pior. Só a gente sabe o que passou neste ano. Tanto é que todos os anos sob o meu trabalho o Grêmio brigou no G-4. Esse ano foi atípico, porque o Grêmio não jogou na Arena.
O que a gente não entende sobre os prejuízos que a enchente trouxe para o Grêmio?
Infelizmente o povo gaúcho passou por tudo que aconteceu. O desespero com o que aconteceu. A gente estava vendo, e a cada três dias tendo que entrar em campo para dar resultado. Eu falei, a conta vai chegar. Então eu não estou falando hoje. Ninguém consegue jogar fora do estádio. As pessoas têm de entender, o pessoal da imprensa também, alguns têm de entender o momento. Temos uma parcela de culpa.
Tem um milhão de motivos. Pô, nós jogamos sete, oito partidas no Campeonato Brasileiro sem um atacante. Nós tínhamos o Diego Costa (lesionado). Aí a janela estava fechada, eu estava improvisando o Galdino e o Galvão de atacante.
O Grêmio poderia estar numa situação pior no campeonato do que está hoje. Por tudo isso. Por isso que eu digo, tem clubes grandes, com grandes torcidas, que não tiveram problema e estão atrás da gente. Foi um ano atípico.
Tem o desejo de seguir no Grêmio no ano que vem?
Por mim, faria um contrato para o resto da minha vida com o Grêmio. Minha cabeça hoje está voltada para fazer os pontos que precisamos no Brasileirão. Não posso chegar lá pro presidente do clube, para o vice-presidente, para o executivo e para a torcida do Grêmio e dizer: "Eu vou ficar". Pode ser um desejo meu. Mas aí tem uma decisão de um presidente, de uma diretoria, de um executivo e da torcida.
Se quando fizer essa pontuação e eu sentir que as pessoas me querem aqui, vou fazer força pra ficar. Se eu sentar e ver que as pessoas não me querem aqui, em primeiro lugar, vou sair com consciência tranquila por tudo o que eu fiz. Sei o que eu fiz durante esse ano. Se não sentir isso da direção e da torcida, vou embora. Tenho a minha vida, não me falta nada. Sou um cara realizado. Gostaria de continuar, mas eu fico onde as pessoas me querem, onde me sinto bem. Não vou ficar aqui roubando o clube, que eu nunca fiz isso. O dia em que o Grêmio me não quiser mais, vou sair pela porta da frente, ok?
Mas o que teu sexto sentido diz agora?
Hoje, meu sexto sentido diz que estou em cima do muro. Fiquei muito triste quando soube que a torcida me vaiou. Não vou negar. Vaiaram no início da partida, né. Entendo o torcedor. Perdemos o Gre-Nal e caímos na Copa do Brasil e na Libertadores. O Renato tem culpa? Tem. Mato essa no peito. Torcedor quer ganhar sempre, e eu entendo.
Mas o torcedor precisa entender os motivos também. Quando fizermos os pontos necessários (para evitar o risco de rebaixamento), vou sentar com o Guerra (presidente). Para me despedir ou sentar com ele e perguntar o que ele pensa. Mas vou sentir o ambiente externo também. O torcedor que vai me dar essa resposta.
Se for o caso de não ficar no Grêmio, pretende trabalhar ano que vem?
Não sei. A minha família não quer que eu trabalhe mais. Tem sido muito pesado. É por isso que eu digo, é só ver o que o Grêmio passou. E eu estou sempre na linha de frente. Então chega uma hora que não é fácil. Minha família não quer mais que eu trabalhe, não. E não é de agora, não. Já lá de trás.
A possibilidade de ficar para disputar o octa no Gauchão é levada em conta?
Do hepta, tenho cinco títulos. Quer que eu te responda o que então? Pô, fiquei triste. Vaiaram, e tudo o que fiz pelo clube? O Grêmio pode ser octacampeão gaúcho. E estou em cinco desses títulos. É como me perguntaram outro dia do Gre-Nal.
Vi até uma entrevista da D'Alessandro. O D'Alessandro, talvez tenha me entendido mal. Eu jamais falei que o Inter não tinha que comemorar o Gre-Nal. Óbvio que tem de valorizar. Só que eu falei o seguinte, o Inter ganhou os últimos clássicos, mas o Grêmio tem ganhado títulos. O Estadual a gente ganha todo ano. O Inter não ganha. Os últimos dois títulos mais importantes, da Copa do Brasil e Libertadores, foram do Grêmio. Mas perder o Gre-Nal, acha que está tudo errado?
Existe solução para enfrentar clubes com mais poder de investimento, como as SAFs?
Já ganhei com times desacreditados no Grêmio. Mas na hora do vamos ver, dentro do campo, é a qualidade. Faz a diferença. A qualidade pode não ganhar sempre. Mas a probabilidade de ganhar é muito maior do que perder. Então tem de ver também onde o Grêmio vai estar. Vai estar aqui em cima, mesmo não sendo SAF, ou vai brigar aqui embaixo. Mas no momento que não tem SAF, não tem dinheiro, na hora do vamos ver, todo mundo quer ganhar. Costumo falar, você quer um omelete, mas você não dá os ovos. Aí cai sempre na conta de quem? Do treinador.
A chance de títulos contra esses clubes é nas copas?
É, mas só que esses times estão nas copas também. Mais cedo ou mais tarde você vai cruzar com eles. Por isso que eu falo. Mais cedo ou mais tarde você vai cruzar com os caras da qualidade. Aí se entende o lado do clube que não investiu. Tá, mas agora você quer ganhar. vamos trabalhar para ganhar, mas a tendência, né? Só que aí não ganha e é o treinador.
O Guardiola é o melhor treinador do mundo. Mas qual foi o time médio, o fraco, que o Guardiola treinou? Qualidade é qualidade, meu amigo. O cara é bom. Até considero ele o melhor. Pega o Carlo Ancelotti, do Real Madrid. Qual foi o time fraco que ele pegou? Aí o cara se destaca. Ganhou, olha como joga bonito. Sou admirador deles também. Gosto deles pra caramba. E com a qualidade, bota eles num time médio. Você olha para o lado, não sabe nem quem colocar em campo, com tanto jogador bom.