Milton + Esperanza é grande disco! Contudo, para perceber a grandeza desse álbum que junta Milton Nascimento com a cantora, compositora e baixista norte-americana de jazz Esperanza Spalding, é preciso captar a aura sagrada do artista brasileiro, entidade sagrada da música do Brasil.
Como Esperanza vem ressaltando nas entrevistas para promover o disco lançado na sexta-feira, 9 de agosto, a força de Milton reside no espírito. Foi-se boa parte da potência da voz divina que fascinou o Brasil e o mundo a partir dos anos 1960, com picos de criatividade e popularidade na década de 1960, mas permanece o viço da alma do artista.
É a pujança espiritual deste carioca de alma musical mineira que alavanca e engrandece o álbum anunciado em maio com a edição do exuberante single Outubro (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1967).
Gravado na cidade do Rio de Janeiro (RJ) ao longo de 2023, com produção musical e arranjos de Esperanza Spalding, o álbum flagra a artista dos Estados Unidos cantando em português, às vezes com sotaque, como em Cais (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, 1972), às vezes praticamente sem, como em Saci (Guinga e Paulo César Pinheiro), faixa de clima bucólico – feita com a participação de Guinga – que reforça a espiritualidade do disco, sobretudo quando Milton invoca o Saci com a voz.
A propósito, a faixa-vinheta que antecede Saci – Interlude for Saci – é gordura dispensável no corpo do álbum. Wings from the thought bird, composição inédita de Esperanza, permanece na floresta, com vocalizes, o toque da Orquestra Ouro Preto e um acento jazzístico que lembra a origem da artista norte-americana.
Morro velho (Milton Nascimento, 1967) é outra faixa orquestrada com a Sinfônica de Ouro Preto e com força espiritual entranhada no arranjo e no canto dos artistas.
Sim, Milton + Esperanza é disco bilíngue na fronteira entre a canção e o jazz. Certas passagens de A day in the life (John Lennon e Paul McCartney, 1967) – sobretudo as mais experimentais com alternâncias de climas e polifonia – reiteram de forma radical a natureza jazzística do disco na abordagem da música dos Beatles.
Com a adesão vocal da cantora Diane Reeves, a recriação de Earth song (Michael Jackson, 1995) parece extrapolar a fronteira de Milton + Esperanza ao alcançar outra dimensão com Reeves. Já Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar) (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1974) ostenta o tom gregário que pauta a vida e obra de Milton.
A gravação reúne Milton, Esperanza, Maria Gadú, Tim Bernardes, Lianne La Havas – cantora inglesa que estava de passagem pelo Rio de Janeiro quando Tim tocou a música para Milton na casa do artista – e o violonista Lula Galvão sem que um artista se sobreponha ao outro na faixa.
A potência espiritual do álbum salta mais uma vez aos ouvidos no encontro de Milton e Esperanza com Paul Simon na canção fraterna Um vento passou (para Paul Simon). Todos cantam em português, inclusive Simon. “O seu canto me levava / Por estradas tão desertas / Paisagens infinitas deste chão”, lembra Milton ao celebrar o amigo norte-americano.
No arremate do disco, encerrado com os quase dez minutos da regravação de When you dream (Wayne Shorter e E. Lee, 1985), a homenagem de Milton e Esperanza é ao compositor e saxofonista norte-americano Wayne Shorter (1933 – 2023), com quem Milton Nascimento gravou em Los Angeles (Califórnia, EUA), em 1974, o álbum de jazz Native dancer (1975).
A faixa final costura o atual disco com o álbum que, há 50 anos, abriu algumas portas no mundo para Milton Nascimento, entidade mineira que, desde 1967, paira na música do Brasil como um avatar.
Somente quem perceber a dimensão espiritual do artista brasileiro vai entender a grandeza do álbum Milton + Esperanza.