Responsáveis por cerca de 50% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, os transportes têm papel central na transição energética. Correndo contra o tempo por uma mudança de matriz para além dos combustíveis fósseis, o setor viu acelerar nas últimas décadas a implementação de energias alternativas nas frotas. E enquanto ainda discute o que seria o transporte do futuro, vê os atalhos ganharem força.
Apesar da dependência da malha viária tanto para o transporte de passageiros quanto para o transporte de cargas, o Brasil tem potencial diferente de outros países na produção dos biocombustíveis e nos veículos que saem de fábrica com esta opção. Enquanto ainda não é possível eletrificar frotas inteiras – por custo ou por infraestrutura —, os combustíveis sustentáveis despontam como meio de caminho.
Nesta fatia, o Rio Grande do Sul desponta como protagonista. Junto com a região Centro-Oeste, o Estado é referência na fabricação de biodiesel a partir da soja, abrigando uma das maiores potências do ramo, a Be8, e já se posiciona para competir também no etanol com investimentos em curso para a produção a partir dos cereais.
— O Brasil sai na frente mundialmente como um dos países que mais usa biocombustíveis. A mistura, que surgiu como medida de segurança energética, hoje tem efeito sustentável. É um meio do caminho em relação à eletrificação, já que tem uma taxa de penetração maior e acelera a mudança. Além de que o Brasil tem uma indústria consolidada no etanol, ou seja, tem maturidade nessa cadeia — pontua Felipe Barcellos, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA).
Movimentos recentes mostram que o Brasil vem se comprometendo a ser liderança. A Lei do Combustível do Futuro, sancionada no início de outubro pelo presidente Lula, propõe aumento gradual da mistura do biodiesel ao óleo diesel pelos próximos anos — podendo alcançar 20% até 2030 e 25% a partir de 2031 —, e eleva o percentual mínimo obrigatório de etanol na gasolina tipo C de 27% para 35%.
O projeto ainda cria programas nacionais para produção de combustível sustentável de aviação, o chamado SAF, outro grande desafio para o setor de transportes. Pesquisas apontam que o combustível alternativo pode reduzir as emissões entre 70% e 90% em relação ao querosene de aviação convencional.
— Há certificações demonstrando que as contribuições (dos biocombustíveis) são reais. E nesse último ano muitas coisas mudaram para melhor, por exemplo por uma série de políticas públicas que acabam agora sendo cobertas pelo guarda-chuva da Lei do Combustível do Futuro. Essa, na minha opinião, é a lei das leis — avalia o presidente da Be8, Erasmo Battistella, sobre a oportunidade brasileira no segmento.
A agenda verde prevê que o Brasil evite a emissão de 705 milhões de toneladas de dióxido de carbono (Co2) até 2037. Outro estudo do Observatório do Clima projeta que as emissões dos transportes de passageiros em 2035 podem ser de 65% a 70% menores que os valores de 2023, ampliando a redução de gases de efeito estufa.
Em 2023, o percentual de energia renovável no setor de transportes chegou a 22,5%, segundo o Balanço Energético Nacional (BEN) divulgado este ano.
— São metas ambiciosas, mas focam numa estruturação urbana, incentivando o transporte coletivo, elétrico e por bicicleta. O Brasil já tem esse potencial, e em conjunto com o incentivo aos biocombustíveis e às políticas habitacionais, que estão ligadas, pode ir mais. O transporte é um tema transversal que precisa ser tratado em várias áreas ligada à adaptação e à mitigação climática — avalia Barcellos, mencionando a relação entre as moradias distantes dos centros urbanos e a sobrecarga do transporte público.
No dia a dia das grandes cidades, iniciativas rumo ao futuro começam a fazer parte do cotidiano, sobretudo no transporte coletivo de passageiros. Em Porto Alegre, uma frota de 12 ônibus elétricos em circulação desde agosto é responsável por traçar os primeiros quilômetros rumo à eletrificação. Em dois meses de operação, os coletivos somados permitiram que se deixasse de emitir 140 toneladas de CO² na atmosfera, além de uma economia direta em combustível nas contas do município.
— Os resultados do primeiro mês de operação são muito animadores. Algo que, projetado a longo prazo, traz estimativa de uma economia bilionária — diz Adão de Castro Júnior, secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre.
Os veículos estampados na cor verde, de fabricação da gaúcha Marcopolo e das paulistas Caio/Eletra, despertam curiosidade dos usuários que se deslocam pelas três linhas atendidas: E178 Praia de Belas, E703 Vila Farrapos e E378 Integradora Centro. Outros veículos em fase de teste, como da fabricante chinesa Ankai, operam as rotas da linha 520.3 - Triângulo/24 de Outubro/Auxiliadora. O ruído silencioso dos motores e o conforto dos carros novos são os pontos que mais chamam atenção dos passageiros.
Equipados com ar-condicionado e acessibilidade, os ônibus elétricos têm autonomia para rodar 250 quilômetros ao dia na Capital. Eles são carregados diariamente nas garagens das próprias empresas que os operam.
A prefeitura diz ter como meta ampliar o transporte elétrico, com projeto para adquirir outros 100 veículos verdes para encorpar a frota. O desafio, pontua o secretário, vai envolver melhora dos terminais de ônibus, com infraestrutura para os carregamentos de oportunidade. A frota da Capital, hoje, é de 1,2 mil ônibus convencionais.
O transporte de modo geral representa quase 70% das emissões de gases em Porto Alegre. Considerando que o transporte público é responsável por transportar cerca de 600 mil pessoas ao dia na Capital, a implementação de frotas elétricas tende a ser uma ótima alternativa no caminho das reduções.
— Os ônibus são um grande teste para a eletrificação. Ficam parados à noite e podem abastecer. Nas cidades, a eletrificação parece mais próxima do que no transporte de cargas, mesmo com a questão da recarga. Pela própria dinâmica da cidade, que na noite as coisas tendem a ficar menos movimentadas — diz Felipe Barcellos, do IEMA.
Apesar da aposta verde, Porto Alegre ainda tem uma frota incipiente de transporte público elétrico. São 12 ônibus ao todo, o mesmo número de Goiânia, contra 381 em São Paulo. Curitiba tem sete, e Brasília, seis.
O Brasil, apesar de certo protagonismo na transição, fica atrás de outros países bem à frente na eletrificação, como o Chile. Conforme o E-Bus Radar, plataforma que reúne dados de frota elétrica na América Latina, são 602 ônibus elétricos em circulação no Brasil, contra 2.659 nos vizinhos chilenos e 1.590 nos colombianos.
No Brasil, o arrancar que leva ao transporte do futuro conta com a vantagem das soluções locais. Segundo especialistas, há uma alta nacionalização da indústria de eletrificação no país, com companhias gaúchas despontando entre elas.
Em paralelo à renovação dos combustíveis fósseis, a Marcopolo desenvolve desde 2018 projetos para produtos totalmente elétricos. Os ônibus Attivi Integral, em circulação em Porto Alegre, possuem chassi e carroceria desenvolvidos exclusivamente pela companhia. A fabricante também tem soluções em curso para ônibus movido a biometano e para veículos híbridos de elétrico e etanol, outra evolução em termos de transportes.
Ricardo Portolan, diretor de Operações Comerciais Mercado Interno e Marketing da fabricante, lembra que, desde o ano passado, todos os ônibus em circulação no país precisam estar enquadrados no Sistema Euro 6, o que já traz grande avanço na pauta sustentável. A norma regulatória, implementada inicialmente na União Europeia, estabelece limites máximos de emissões de poluentes para veículos a diesel.
— São soluções em várias frentes na estratégia de descarbonização. Enxergamos que o futuro é com soluções múltiplas, a depender da realidade de cada local. No caso do elétrico, fizemos testes ao longo de cinco anos no Brasil e no Exterior. Por uma feliz coincidência, surgiu a parceria com Porto Alegre para as oito unidades em circulação.
Apesar da desvantagem frente a outros polos mundiais, sobretudo em demanda, o setor elétrico experimenta maior incentivo nos últimos anos. Ainda carece, no entanto, de infraestrutura que garanta o abastecimento dos veículos Brasil afora, para além das capitais. Este é considerado o maior entrave pelo setor.
— O novo PAC já prevê uma linha que incentiva a eletrificação, então aos poucos o tema começa a aparecer com mais força nas políticas públicas. Mas temos muito menos frota que outros países. Nos carros elétricos, por exemplo, temos ainda bastante para incentivar. Em termos de potenciais, o setor é um bom mercado — observa o pesquisador do IEMA, Felipe Barcellos.
A fabricante gaúcha diz estar preparada para um futuro aquecimento do mercado.
— Vemos uma introdução bastante boa, mas ainda menor em termos de demanda. Na prática, a compra está menor do que se esperava. Vemos para o próximo ano um aumento, mas ainda incipiente pela limitação da infraestrutura — diz Portolan.
As soluções em eletromobilidade ganham cada vez mais espaço na indústria ligada aos transportes. A também gaúcha Randoncorp inaugurou este ano uma unidade de produção em Caxias do Sul, na Serra, dedicada exclusivamente ao segmento. Primeira fábrica de baterias automotivas do Brasil, a Suspensys e-Mobility faz a montagem e a produção de baterias com capacidade para atender veículos leves, comerciais e implementos agrícolas. A planta recebeu investimento de R$ 60 milhões.
A expectativa da companhia é de ampliar a capacidade inicial de produção de 200 para mil conjuntos de bateria/ano nos próximos cinco anos, respondendo ao movimento cada vez maior de eletrificação das frotas.
Enquanto uma série de alternativas são desenvolvidas mundialmente, da fonte elétrica ao hidrogênio verde, o caminho possível para a transição nos transportes será multienergético. Ou seja, considerando várias fontes alternativas integradas, dizem os especialistas, até que os combustíveis do futuro sejam totalmente realidade.
A tendência, que já é vista saindo das fábricas, traz resultados. Num veículo híbrido (que alia eletricidade e biocombustível, por exemplo), a economia de combustível é de 50%, dizem estudos. As tecnologias que combinam mais de uma inovação sustentável são apontadas como opção viável tanto para o transporte individual como para o transporte de cargas e o transporte coletivo.
— Haverá um processo ainda de amadurecimento para que entendamos a alternativa de futuro. As baterias evoluíram muito e isso facilitou mundialmente. No transporte público, teremos uma caminhada e a transição será multienergética — avalia o secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre Adão, Adão de Castro Júnior.
— Vejo que o Brasil tem multisoluções. Boa parte seguirá com diesel e suas misturas, os elétricos têm mais sentido nos meios urbanos, já o híbrido vemos um grande potencial especialmente no interior do país, já que não depende exclusivamente de infraestrutura de carregamento. Vemos um futuro com diferentes alternativas de propulsão — concorda o diretor da Marcopolo, Ricardo Portolan.
O presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Carga e Logística no RS (Setcergs), Sérgio Mário Gabardo, vê ainda uma série de desafios a serem destravados no setor logístico para a renovação das frotas. Entre elas, o custo dos próprios veículos atualizados às novas políticas e o custo da operação em si, incluindo mais paradas e abastecimento.
— É uma discussão em evolução no mundo. O hidrogênio com certeza fará parte do transporte do futuro, assim como o elétrico e o biodiesel. Mas vai depender da disposição para se ter esse combustível. Há uma demora porque os investimentos estão travados nesta frente, mas existe o potencial — analisa Gabardo.