Medo excessivo, irritabilidade, crises de choro e falta de interesse por brincar são algumas das alterações de comportamento que as crianças podem manifestar diante de tragédias como a que assola o Rio Grande do Sul. Desde o início das enchentes, há uma grande preocupação com esse grupo, que pode ser ainda mais vulnerável aos impactos físicos e psicológicos. Especialistas alertam para a necessidade de cuidado redobrado neste momento, mesmo com os pequenos que não foram diretamente afetados pela água.
Thiago Rocha, psiquiatra da Infância e Adolescência do Hospital Moinhos de Vento, destaca que existe uma dupla vulnerabilidade nas crianças porque elas dependem dos adultos e, além de estarem vivendo a tragédia, percebem seus cuidadores abalados. Isso vale tanto para as que estão vivenciando o trauma de maneira direta, com a perda da casa ou de familiares, quanto para aquelas que estão testemunhando os acontecimentos por meio de notícias:
— Estamos falando de um cenário de calamidade, onde todo mundo está vivenciando isso de uma forma. De certa maneira, é parecido com o que vivemos no período inicial da pandemia: mudanças na rotina, fechamento de escolas. E não é só o impacto direto sobre as crianças, mas também o fato de verem seus cuidadores sofrendo. São crianças que estão acumulando momentos difíceis no seu desenvolvimento.
Não poder contar com o apoio do adulto de referência é muito nocivo quando combinado com fatores de risco, como desastres naturais, guerras e cenários de violência, acrescenta a oficial de primeira infância do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Maíra Souza. Nesse cenário, pode surgir o chamado "estresse tóxico", que é uma resposta do sistema nervoso para situações de tensão prolongada, estresse permanente e perigo.
A especialista também aponta que a primeira infância (até os seis anos) é a base do desenvolvimento, por isso, tudo que ocorre nessa fase gera repercussão na vida toda do indivíduo – seja positiva ou negativa. Assim, uma criança que tem acesso aos seus direitos básicos de cuidado integral (saúde e nutrição, educação e aprendizagem, segurança e proteção, cuidados responsivos) consegue ter um desenvolvimento mais pleno. Mas quando algum deles é violado, pode haver impactos.
— A criança não tem repertório para lidar com essas situações. Se nós, adultos, já não temos, imagina as crianças. Elas ficam em um estado de prontidão, que gera uma ativação mais prolongada dos hormônios. A adrenalina fica em alta e isso pode causar um comprometimento do sistema nervoso, gerando traumas, medos e problemas na aprendizagem — ressalta Maíra.
Os especialistas reforçam a necessidade de buscar estratégias para amortecer esses impactos. O primeiro desafio, na visão da representante do Unicef, é ajudar os adultos, pais e cuidadores a lidar com a carga emocional da situação, pois eles precisam estar bem para conseguir cuidar das crianças. Ou seja, também é importante que haja amparo psicológico para essas pessoas.
Também é preciso garantir que as necessidades básicas das crianças em situação de vulnerabilidade sejam atendidas. De acordo com Rocha, é essencial que estejam em ambientes seguros, com acesso à cuidados de saúde, água potável e locais de higiene.
— Todos esses cuidados básicos são fundamentais para que possamos pensar nos aspectos psicológicos. Sem essa outra parte, fica mais difícil dar o suporte psicológico e tranquilizar emocionalmente. É preciso oferecer o mínimo de condições para que as crianças se sintam mais seguras e amparadas — enfatiza o psiquiatra.
As reações dependerão da idade e do temperamento de cada criança. Algumas são mais retraídas naturalmente e podem se manter assim, enquanto outras preferem colocar para fora o que estão sentindo. Demonstrações de raiva, tristeza, medo, crises de choro, pesadelos frequentes, falta de interesse pelas brincadeiras, regressão e alterações de comportamento são algumas das respostas que podem aparecer.
Essas mudanças comportamentais intensas também são semelhantes às que ocorreram durante a pandemia, aponta o psiquiatra Rocha, e podem indicar que a criança está em sofrimento. Por isso, todos os sentimentos expressados precisam ser validados e respeitados neste momento, para que se sintam percebidas e escutadas:
— Quando não tem um culpado e não conseguimos explicar por que aquilo ocorreu, temos que lidar com uma sensação de impotência. Muitas vezes, as crianças transmitem isso com alterações de comportamento. E as famílias precisam dar o suporte necessário para que seja acolhida independentemente do comportamento.
Conforme o psiquiatra, quanto maior for a exposição da criança à tragédia, maior será o risco de apresentar dificuldades emocionais. Mas mesmo aquelas que não vivenciaram diretamente o trauma podem ter um impacto psicológico grande. Por isso, os adultos precisam ser cuidadosos ao expor às crianças o que está acontecendo no RS.
— Não precisamos expor uma criança a uma situação pesada para que ela viva o mundo real. Ela precisa viver isso dentro da sua capacidade de compreensão. Sugiro que seja evitado expor conteúdos e comentários de maneira desnecessária. Às vezes, é melhor desligar a TV, não comentar durante as refeições e nos momentos em família para que a criança possa seguir sendo criança — recomenda o psiquiatra.
A necessidade de filtrar as informações não significa que seja indicado mentir ou omitir a verdade. Maíra Souza, da Unicef, afirma que não se deve subestimar a inteligência dos pequenos, pois eles conseguem perceber e absorver o que está acontecendo ao redor, mesmo que não compreendam. Os especialistas orientam que os adultos sejam sinceros, transparentes, transmitam segurança e reafirmem o valor de suas dúvidas e angústias. O psiquiatra Thiago Rocha pontua:
— Se a criança faz perguntas, é importante que a gente dê respostas e não diminua suas dúvidas e opiniões. Temos que validar isso para que a criança se sinta vista e escutada. Mas uma coisa é informar e outra é sobrecarregar a criança de informações. Esse repasse de informações precisa levar em conta a idade da criança e sua capacidade de entender. É necessário explicar de uma forma mais lúdica e respeitar o ritmo da criança — se ela não perguntar, pode ser que não precise daquela informação. Por outro lado, evitar o assunto pode deixar que fantasie algo ainda pior do que a realidade.
Ao falar com crianças que não foram diretamente atingidas, além de explicar o que está acontecendo, deve-se tranquilizá-las sobre o impacto da situação em suas vidas e na de seus familiares e garantir que estão em segurança.
Segundo a representante do Unicef, também é fundamental acolher as crianças, seja com abraços ou perguntando como estão se sentindo, proporcionar brincadeiras e estimular a ludicidade, mesmo em ambientes diferentes, como os abrigos. Nesses cenários em que os pequenos estão fora de suas casas, ter uma rotina com horários para as atividades é outro fator que pode ajudar, pois oferece uma sensação de segurança, previsibilidade e diminui o estresse.
— Os adultos podem pensar como as crianças maiores podem participar dessa nova rotina e ajudar diante dessa nova realidade. Deve-se construir um espaço de ludicidade, mas sem perder o senso de realidade — recomenda Maíra.
Muitas vezes, o apoio da família é suficiente para amenizar o sofrimento das crianças. De toda forma, é preciso estar atento à intensidade dessas emoções e alterações de comportamento. Dificuldades para dormir, se alimentar e interagir também podem indicar a necessidade de buscar ajuda profissional.
— A infância é um momento de brincar. Quando a criança perde o interesse por brincar, é um sinal de alerta muito claro de que precisa de ajuda — alerta o psiquiatra Rocha.
Em relação às crianças que estão em abrigos, também é necessária uma atenção especial à saúde física. Isso porque há uma tendência de aumento de casos de doenças transmissíveis, principalmente as respiratórias, como gripe, covid-19, pneumonia e infecções por vírus sincicial respiratório (VSR), enfatiza João Krauzer, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Moinhos de Vento:
— As famílias ficam muito perto umas das outras, e estamos entrando na pior época do ano, que é o inverno. Então, as doenças respiratórias vão se disseminar de forma bem importante. E os casos de VSR tendem a aumentar muito, porque é um vírus de alta transmissibilidade, que causa sintomas variados como tosse, coriza, febre e dificuldade respiratória.
Além disso, especialistas já estão observando vários casos de escabiose (sarna) e piolho, que são mais frequentes em crianças. Doenças associadas ao contato com a água das enchentes, como infecções de pele, leptospirose, hepatite A e gastroenterites, também atingirão esse grupo, mas geram alerta ainda maior, pois os pequenos são mais suscetíveis a quadros graves.
— Nas crianças, a breve identificação de doenças gastrointestinais é importante porque elas desidratam mais do que os adultos. De forma geral, a criança acaba sendo mais suscetível porque seu sistema imunológico é mais deficitário, ainda está em formação. Então, pelo simples fato de serem crianças, elas ficam mais doentes do que os adultos — diz Krauzer.
De acordo com o especialista, de maneira geral, os sintomas que as crianças apresentam são os mesmos dos adultos. No caso da leptospirose, por exemplo, podem apresentar diarreia, dor na panturrilha, dor abdominal, manchas avermelhadas na pele, dores musculares e nos olhos. Já a infecção por VSR costuma ocorrer com as piores manifestações em bebês de até dois anos. Um sinal bastante comum dessa doença é a dificuldade respiratória, prejudicando a mamada.
Como forma de prevenir as doenças respiratórias, Krauzer indica manter um certo distanciamento de pessoas com sintomas quando possível, fazer limpeza nasal diariamente, beber muito líquido, higienizar as mãos com frequência e evitar o contato com olhos, nariz e boca. Também recomenda que o aleitamento materno não seja interrompido neste momento e que os pais procurem atendimento médico logo no início dos sintomas. O pediatra enfatiza ainda a necessidade de revisar o calendário vacinal e colocar a carteira de vacinação em dia:
— É muito frequente que, nesses episódios de tragédia, se perca os calendários e a sequência da vacinação. É preciso verificar o que ficou para trás nas carteiras de vacina dessas crianças que estão em abrigos e providenciar a vacinação. A vacina da hepatite A, por exemplo, é oferecida na rede pública a partir de um ano e três meses. Se estiver atrasada, tem que ser feita.
O presidente da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, José Paulo Ferreira, acrescenta que faz parte dos cuidados permitir que as crianças brinquem, já que, sem essa rotina lúdica, podem ficar muito ansiosas e angustiadas. Pensando nisso, a entidade lançou a campanha "criança tem de brincar", com o objetivo de arrecadar brinquedos que são doados aos pequenos que estão em abrigos de Porto Alegre.
— A profissão da criança é brincar. Uma criança precisa criar, interagir, sonhar, mesmo que seja em um abrigo, porque dessa forma está produzindo, fantasiando, botando as angústias e ansiedades para fora — pontua Ferreira.
Conforme o presidente, a campanha começou de forma pequena, com uma publicação no Instagram, e "explodiu". Pessoas e empresas de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraná enviaram brinquedos para abastecer diferentes abrigos. Mas Ferreira ressalta que o movimento será prorrogado, já que as crianças precisarão de novos itens quando retornarem para suas casas e para as escolas que foram atingidas:
— Por enquanto, temos braço para distribuir somente em Porto Alegre. Mas quando melhorar a questão da circulação, também poderemos proporcionar para crianças de outras cidades. Não vai faltar criança para receber.
Doações podem ser entregues na sede do Simers (Rua Coronel Corte Real, 975, no bairro Petrópolis) e no Instituto Goethe (Rua 24 de Outubro, 112, no bairro Moinhos de Vento).